Desde 2006 servindo algumas lasanhas e muitas abobrinhas.

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sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Zulmira

Abriu os olhos e gastou 10 segundos pra reconhecer o local em que estava. Aquele era seu quarto, há pelo menos sete anos não acordava em outro lugar, mas sempre tinha esperança de ao abrir os olhos, o cenário ser diferente. Mais uma vez, se sentiu frustrada...
O que fazer além de se levantar? A caminho do banheiro, ligou o rádio. A música dizia algo sobre a possibilidade de voltar no tempo pra mudar algo do passado... Não havia formas de ela saber o que seria, onde estaria agora, se tivesse saltado daquele maldito ônibus há cerca de cinco anos atrás.
Como pode um acontecimento aparentemente banal martelar tão insistentemente em sua cabeça? Parecia que havia sido ontem que ela estava num ônibus indo á aula quando viu ele num ponto. Ela deu tchau. Ele, sorrindo, fez um gesto pra que ela descesse do ônibus. Ela abanou a cabeça e apontou o relógio. O ônibus andou e ela nunca mais o viu...
Agora ela pensa que aquele momento foi a chance que a vida lhe deu pra ser feliz. E ela desperdiçou. No dia seguinte, ela havia ligado pra ele e ouviu uma mensagem que aquele número não existia. Ele mudou o número do celular. Ele se perdeu pela multidão dessa cidade. Onde ele andará?
Ao escovar os dentes, percebeu que a pasta estava acabando. Teria que comprar outra. Ao ver seu reflexo, o espelho lhe mostrou mais algumas linhas finas se formando ao redor dos olhos.
A música dizia que o acaso é amigo do coração. É não! O acaso é na verdade uma armadilha, um teste. O acaso está sempre de tocaia esperando o melhor momento pra derrubar nossos sonhos.
Nem sentiu o sabor do café com leite e do pão com geléia de goiaba e fatias de queijo. Comia mecanicamente enquanto sua mente voava. Ao terminar e se ver diante de uma caneca vazia e um prato de sobremesa cheio de migalhas se sentiu miserável.
No elevador, se deparou com três barulhentas crianças fardadas e perfumadas, de aproximadamente sete anos de idade. Não pôde deixar de pensar que em breve elas deixariam de serem felizes, se é que eram. Logo cresceriam e não haveria mais ninguém para cuidar delas. Elas morreriam. Todos nós morreremos. Tantas lutas, tanto sofrimento pra nada! Daqui um século, nem suspeitarão que existimos.
A caminho do trabalho, pôde ainda ver mendigos enrolados em finas e sujas cobertas, ainda dormindo. Teve que se conter pra não ir até eles e chuta-los. Isso não era certo! Mas intimamente sentia que isso a faria feliz.
E passou todo o dia querendo sumir de onde estava...
E passou a noite, até a hora de dormir, querendo sumir...
Um minuto antes de adormecer, pensou com desagrado que o sono só encurtava o tempo até o dia seguinte.

Um comentário:

Anne disse...

Muitas vezes me sinto uma Zulmira, sabia? (aliás, adoro suas personagens!!!) No momento estou assim mesmo, perguntando pra que tanto cuidado com a vida se amanhã - ploft - já era????

A culpa é minha se sempre me sinto sufocada com as situações cotidianas. De alguma forma devo procurar problemas se consigo elencar uma coleção deles. Bem feito pra mim! Hehehe!

Prazer em conhecê-la, Zulmira! Vamos trocar idéias (sim, Zulmira, conte-nos mais de suas experiências).


Beijos, Van!