O artigo à seguir foi escrito para cumprir tarefa na Especialização que fazia ano passado. Apesar de fazer referência à novelas que não estão mais sendo exibidas, o tema se mostra cada vez mais relevante.
Numa pesquisa superficial sobre o tema, encontrei os seguintes links: Arte do negro no Brasil, Ação afimartiva para crianças negras, A criança negra na televisão, entre outros...
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Qual a contribuição das mídias para a auto-aceitação de crianças negras?
Vanessa Lee
Salvador, 09 de Junho de 2006
Desde cedo, internalizamos modelos. Por exemplo, como é uma criança bonita? Quase sempre corresponde a um padrão no quais as crianças reais que nos cercam não se encaixam, pois os modelos que usualmente são desejados e admirados são os mais parecidos possíveis ao padrão euro-estadunidense. Aprende-se á idealizar algumas características que se aproximam do modelo euro-estadunidense de ser, agir e se vestir por meio dos livros, meios de comunicação, grande mídia, filmes, revistas e etc. (TRINDADE, 2002)
Entretanto, as crianças que nos cercam em nosso cotidiano, sobretudo em Salvador não correspondem á esse padrão, pois são em grande parte afro-descendentes. Ou seja, não possuem as características tão estimadas como os cabelos lisos, os narizes afilados e os olhos claros. Ao mesmo tempo, essas crianças além de não corresponderem ao modelo físico europeu, ainda são herdeiras da triste história de escravidão que os negros foram vítimas por mais de 300 anos, no Brasil. Apesar de a escravidão ter sido abolida há mais de 100 anos, os afro-descendente ainda sofrem com o preconceito racial.
Diante do exposto, cabe questionar: qual a contribuição da mídia para a auto-aceitação das crianças negras? Será que a mídia oferece imagem de negros no quais as crianças afro-descendentes sintam-se confortáveis em se reconhecerem?
Como o tema é muito amplo, nesse texto será enfocado em que modelos de negros são oferecidos em dois tipos de mídia que as crianças brasileiras, inclusive as negras, mais têm acesso: a televisão, sobretudo a telenovela e os livros infanto-juvenis.
A mídia mais acessível e consumida por boa parte da população, inclusive as crianças, são as emissoras televisivas. A televisão se tornou um eletrodoméstico quase que indispensável nos lares brasileiros. Os profissionais que trabalham nessa mídia “constroem diferentes retratos de nossa realidade social, com requintes de maquiagem técnica.” (OROFINO, 2003 p.110) A televisão não permite a leitura, a releitura e reflexão que os suportes textuais (jornais, revistas, etc.) permitem sobre o lido. Sua dinâmica exige que as imagens sejam absorvidas e respondidas simultaneamente, numa reação reflexa e rápida. “(...) absorvemos realidades do mesmo modo como esponjas secas sugam qualquer líquido ao se alcance.” (ARBEX, 1995 p. 13)
A presença de negros na televisão é muito importante para a construção da imagem dos negros de si mesmo. Os telejornais ainda trazem em grande parte apresentadores e jornalistas brancos. A Rede Globo é a emissora que tem mais repórteres negros, mas o número não chega á dez (RIGHETTI, 2006). A telenovela é uma das principais atrações da TV, sendo acompanhada por meses por um público fiel.
Fonte de divertimento, lazer e informação. (...) Portanto, afeta o seu público na medida em que lhe dá entretenimento, mas também novas formas de encarar o mundo, os problemas, os assuntos do cotidiano. (PALLOTTINI, 2006).
E qual participação nas novelas estaria sendo destinada aos negros? Segundo Joel Zito Araújo, escritor e diretor cinematográfico, apenas recentemente houve um aumento na participação de afro-descendentes nas produções televisivas. Está emergindo no setor da publicidade e da telenovela a necessidade de se aumentar a presença de atores negros, aliando á estes uma imagem de beleza, numa representação mais positiva, tendo a preocupação de que estes não apenas apareçam em papéis estereotipados. (ARAÚJO, 2006.) Araújo ainda cita o exemplo da telenovela “Da Cor do Pecado” que trouxe como protagonista uma personagem negra, a Preta, interpretada por Taís Araújo. Apenas o fato da protagonista ser negra, segundo Joel Zito Araújo, teve um impacto simbólico importante, especialmente entre as crianças negras. Entretanto, a citada telenovela não trouxe um núcleo negro e sim a protagonista imersa num mundo branco, o que demonstra que os negros ainda estão sendo representados como seres exóticos no universo branco.
Entretanto, os estereótipos em relação aos negros ainda continuam á serem apresentados nas telenovelas. Atualmente, a Rede Globo de Televisão está exibindo às 18 h a telenovela “Sinhá Moça”, que está sendo alvo de inquérito civil na Bahia. Segundo informe da Assessoria de Comunicação Social do Ministério Público da Bahia, divulgado pelo site da referida Instituição, o inquérito foi instaurado pelo promotor de Justiça da Cidadania Almiro de Sena Soares Filho. Segundo o citado promotor, que também é titular da Promotoria de Combate ao Racismo, a veiculação de “Sinhá Moça” em um horário plenamente acessível ao público infantil e adolescente, apresenta cenas de humilhação física e moral de pessoas negras, sob um verniz de obra de cunho histórico.
Os negros estariam sendo inferiorizados ao serem retratados na telenovela como submissos á situação da escravidão ou que poucos se rebelavam através de ações pouco eficientes, o que se caracterizaria em deturpação da história. O inquérito visa verificar se a veiculação da telenovela atenta contra a dignidade humana da comunidade negra. (CARDOSO, 2006). Outra novela que pode se tornar alvo de inquérito é “Cobras e Lagartos” por também apresentar situações racistas, segundo o promotor. A existência de tal inquérito mostra que a comunidade afro-descendente não está mais disposta á ter a imagem de seus antepassados unicamente associada á situações de rebaixamento humano, pois essa imagem também influência na auto-imagem das futuras gerações.
Outra mídia de grande acesso por crianças é a literatura infanto-juvenil, apesar de que em menos escala que a televisão. A competição entre livros infantis e a televisão é desigual, já que poucas pessoas sabem e gostam de ler. Porém, apesar de provavelmente a maioria das crianças não terem livros de histórias em casa, podem encontrá-los em outros espaços, como o escolar. Mas o que caracterizaria um livro como sendo infanto-juvenil?
Literatura infanto-juvenil, a literatura feita por pessoas adultas para crianças e jovens. É uma arte que povoa a imaginação, e por isso, tem o se espaço na formação da mente plástica do ser que a ela tem acesso. (ANDRADE, 2001 p. 113)
De acordo com Heloisa Pires Lima, bacharel em Psicologia pela PUC e Mestre em Antropologia Social pela USP, a literatura infanto-juvenil através de uma tríade (livros pequenos, leitores crianças e personagens adaptados para a infância), trabalha idéias, conceitos e emoções. (LIMA, 2001) É uma linguagem favorável ao desenvolvimento do conhecimento social e á construção de conceitos. Por meio do texto escrito e das ilustrações, imagens são transmitidas e visões de mundo são cristalizadas. Os enredos e personagens dessas histórias acabam sendo representações dos valores simbólicos da sociedade em que aquela obra foi criada.
A imagem age como instrumento de dominação real através de códigos embutidos em enredos racialistas, comumente extensões das representações das populações colonizadas. A representação popular do outro racial pela mídia também sugere uma investigação, como fantasias coletivas que ajudam na manutenção de identidades dominantes, construtoras de sentimentos que acabam por fundamentar as relações sociais reais. (Ib id, p. 96-97)
Herdamos muitos contos- de- fadas originários da Europa, sobretudo da região da Alemanha. Por isso, não é de espantar que as princesas dos contos- de- fada sejam brancas como a neve, por exemplo. Mesmo nas histórias criadas no Brasil, geralmente o padrão físico dos personagens segue o modelo euro-estadunidense, ou seja, de tez branca.
O que se verifica quando há personagens negros retratados nessas histórias, segundo Heloisa Lima, estes costumam aparecer numa gama limitada de estereótipos: como escravos e empregadas. O problema não estaria em ter personagens negros escravos, mas a forma como a situação de escravidão é retratada, naturalizando o sofrimento e a humilhação que todo um povo foi vítima, se constituindo numa violência simbólica. O mesmo se verifica quando há personagens de negras como empregadas domésticas, em que o problema não é a profissão, mas a imagem de mediocridade cognitiva e o comportamento nada altivo. Ainda segundo Heloisa Lima, não apenas no enredo, mas também nas ilustrações verifica-se que as personagens negras são retratadas com traços grotescos e feições idiotizadas. “O modelo repetido marca a população como perdedores e atrapalha uma ampliação dos papéis sociais pela proximidade com essa caracterização, que embrulha noções de atraso” (Ib id, p. 98).
Ao se deparar com esses modelos depreciativos, a criança negra rejeita se identificar com um povo que tem tal imagem de submissão e escravidão, desejando pertencer ao grupo visto como superior e dominador, no caso, dos brancos. Os livros infanto-juvenis, em sua maioria, ainda apresentam imagens pouco dignas para as crianças afro-descendentes se reconhecerem. Entre as crianças brancas é reforçado o conceito que as crianças negras são inferiores á elas, reforçando o preconceito e o racismo.
Em uma tentativa de modificar essa realidade, livros infantis com imagens positivas de personagens negros estão sendo lançados. Um exemplo é o livro “Luana, a menina que viu o Brasil neném” (MACEDO; FASTINO, 2004) que foi distribuído às Escolas da Rede Municipal de Educação de Salvador. O livro traz a primeira heroína negra, Luana, menina de 8 anos que vive numa comunidade remanescente de quilombo, que com seu berimbau mágico visita o cenário do descobrimento do Brasil. Já foram lançados o segundo livro com outra aventura da personagem e revistinhas em quadrinhos da personagem.
As mídias ainda não estão oferecendo bons modelos de negros para que as crianças se reconheçam como pertencente á grupo que de contribuições inestimáveis na formação do Brasil. Porém, se percebe tentativas de se modificar a imagem dos negros veiculada nas mídias de grande acesso pela população. Espera-se que cada vez mais surjam mais obras que atenda a demanda que os livros que estimulem a alteridade e a valorização também de outros grupos que não sejam dos brancos. Imagem “comprometida com nosso povo mestiço, belo, forte, que luta, que surpreende, que ri, que chora, que cria cotidianamente saberes e estratégias” (TRINDADE, 2002 p. 16).
Quanto aos educadores, cabe o papel de suprir a carência de imagens positivas de afro-descendentes, selecionando o material á ser utilizado dentro do espaço escolar. De acordo com a disponibilidade dentro das escolas onde atuam, podem-se usar as mídias positivamente através da leitura de livros com personagens negros que fujam do estereotipo do escravo/ empregada/marginal, como o citado livro “Luana, a menina que viu o Brasil neném”. Além disso, pode-se usar filmes, desenhos, fotografias que tenham imagens positivas de afro-descendentes, dando novos suportes para a auto-aceitação das crianças negras e respeito e admiração nas crianças não-negras.
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Construindo a auto-estima da criança negra. In: MUNANGA, Kabengele (org.) Superando o racismo na escola. 3º edição. Brasília; Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 2001 p. 111-118.
ARAÚJO, Joel Zito. Como está a representação do negro nas telenovelas? Revista Eletrônica diverCIDADE. www.centrodametropole.org.br/divercidade/numero7 Acessado em 26/05/2006.
ARBEX, José. O poder da TV. São Paulo; Scipione,1995
CARDOSO, Maiama. ‘Sinhá Moça’ é alvo de inquérito civil na Bahia. www.mp.ba.gov.br/noticias/2006/mai_18_inquerito.asp, 18/05/2006.
LIMA, Heloísa Pires. Personagens Negros: Um breve perfil na literatura infanto-juvenil. In: MUNANGA, Kabengele (org.) Superando o racismo na escola. 3º edição. Brasília; Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 2001 p. 95-110.
MACEDO, Aroldo; FAUSTINO, Oswaldo. Luana, a menina que viu o Brasil neném. São Paulo; FTD, 2004.
OROFINO, Maria Isabel. Mídia e educação: contribuições dos estudos da mídia e comunicação para uma pedagogia dos meios na escola. In: FLEURI, Reinaldo Matias (org.). Educação intercultural: mediações necessárias. Rio de Janeiro; DP&A, 2003 p. 109-124.
PALLOTTINI, Renata. Qual a influência da telenovela na sociedade brasileira? Revista Eletrônica diverCIDADE. www.centrodametropole.org.br/divercidade/numero7 Acessado em 26/05/2006
RIGHETTI, Sabine. Presença do negro na mídia é marcada pelo preconceito. www.comciencia.com.br/reportagens /negros/08, Acessado em 26/05/2006.
TRINDADE, Azoilda Loretto. Olhando com o coração e sentindo com o corpo inteiro no cotidiano escolar. In: TRINDADE, Azoilda Loretto; SANTOS, Rafael dos (orgs.). Multiculturalismo – Mil e uma faces da Escola. 3º edição. Coleção: O sentido da Escola, Rio de Janeiro; DP&A, 2002 p. 7-16